A busca diária pelo autoamor
Julie Oliveira | Artista da Palavra
9/23/20252 min read


“Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente.” – bell hooks
Em tempos em que tanto se fala em autocuidado, é comum que exista uma ideia distorcida sobre o que significa amor próprio. Especialmente quando pensamos em contextos atravessados por múltiplas violências sistemáticas e estruturais que vão muito além das estratégias capitalistas: dificuldade de acesso à educação de qualidade, precarização do sistema de saúde, violência policial, deslegitimação de saberes informais e não acadêmicos, criminalização e desumanização de corpos não brancos, salário mínimo incompatível com o custo de vida, impossibilitando o direito ao lazer e à cultura, além do descaso do Estado com territórios periféricos.
A tudo isso ainda se somam mecanismos racistas, classistas, machistas e lgbtfóbicos que sustentam a base da sociedade atual.
Muito mais que skincare e tempo de qualidade, amor próprio é, muitas vezes, um direito negado a pessoas racializadas e periféricas. É possível amar a si mesmo quando a empresa reconhece seu comprometimento, mas na hora da promoção escolhe uma pessoa branca com um “currículo melhor”? É possível amar a si mesmo quando você olha para o próprio currículo e percebe que ele poderia ser muito melhor se tivesse tido tempo e recursos para aprender outra língua, fazer cursos técnicos ou uma pós-graduação, mas precisou trabalhar em três lugares diferentes porque a fome não podia esperar? Entre pagar a conta do gás e a mensalidade da Cultura Inglesa, o luxo de falar outro idioma nunca foi uma opção. Afinal, se nem respeitam seu pretoguês, que dirá seu inglês mal falado.
É possível amar a si mesmo quando você negligencia seu corpo, aprende a conviver com dores que não deveria sentir, mas sabe que não terá condições financeiras de bancar exames e tratamentos? Como amar a si mesmo quando você foi criado para cuidar dos outros? Como amar a si mesmo quando herdou toda dor e violência vivida por seus ancestrais?
Amar é, sim, um ato de resistência em grupos oprimidos, porque sistematicamente o Estado nos coloca em situações de dor. Prova disso são os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: 2.215 crianças e adolescentes negros de até 19 anos foram mortos no Brasil entre 2017 e 2019. Com o tempo, amadurecemos a consciência de que amar a si mesmo não é apenas um desafio individual, porque grande parte das nossas dores têm raízes sociais.
Historicamente, corpos não brancos foram desumanizados e criminalizados. Sobreviver em uma sociedade onde o racismo é estrutural nunca foi fácil. Amar a si mesmo, então, é não sucumbir à naturalização da violência. É escreviver, todos os dias, a partir de práticas e saberes ancestrais invisibilizados pela academia, mas vivos no cotidiano. É resistir às estatísticas e ocupar espaços através da palavra. É lutar para ter forças de construir novos caminhos e possibilidades de vida, promovendo trocas, autonomia, emancipação de corpos e mentes, e fortalecendo redes de apoio entre oprimidos que lutam pelo direito de existir plenamente.